As sobrevivências improváveis
Priscilla Menezes, escritora, ilustradora e artista, nos recebe em seu apartamento e divide neste relicário o seu universo particular em objetos atravessados por afeto, espiritualidade e poesia
Por Layse Barnabé de Moraes
Fotos Victor Curi
Priscilla Menezes mora em Copacabana em cima de uma floricultura, de uma casa de artigos religiosos de matriz africana e de um bar. Seu amigo, que me acompanha para fotografá-la, me alerta para o fato de que essas três coisas juntas, sob os pés da Pri, como ele a chama, dizem muito sobre ela.
Priscilla transita entre a imagem e a palavra. Escritora e ilustradora, a carioca cresceu em Florianópolis, mas voltou ao Rio de Janeiro aos 22 anos. Autora do livro Erro tácito (Editora Patuá), de onde empresto a frase que dá título a este texto, ela conta: “A minha relação com o texto é anterior à minha relação com a imagem. Eu desenhava quando era criança, mas parei depois de um tempo. Acho que a escrita sempre foi alguma coisa através da qual eu encontrei espaço para mim. Escrever sempre esteve muito junto de uma forma de me colocar no mundo e construir uma subjetividade”.
Apesar da relação prévia com a escrita, Priscilla optou por cursar Artes Visuais e seguiu nesse caminho da graduação até o doutorado: “Eu queria pensar a arte, mais do que necessariamente fazer. A pesquisa e a teoria me interessam. É um desejo genuíno meu. Produz potência poder inclusive pesquisar trabalhos de outros artistas, pensar temas e registros diversos e ver como isso pode ressoar no meu trabalho. Então, para mim, tem uma relação de combustível, de uma coisa alimentar a outra”.
Priscilla desenha quase sempre com nanquim e em folhas de papel: “A minha relação com o papel é muito forte. Se a escrita também se dá nesse território, meus desenhos, não por acaso, também acontecem no papel A4, que cabe na mesa. Até hoje, nunca fui uma pessoa de grandes formatos, então, de certa forma, tem uma lógica do livro.”
Seja em palavra, seja em desenho, o que a motiva é simplesmente o desejo de produzir: “as coisas surgem quando surgem. Tem desenho que surge com uma palavra, uma anotação. Para mim, na escrita não tem onde se esconder, é um lugar de muita exposição. Tem uma relação muito mais de me colocar ali. Eu me sinto muito mais exposta no texto. Já no desenho, eu tenho algumas ferramentas. Acho que o desenho é um processo mais mediado, enquanto o texto é uma relação de quase refração”, explica ela.
Não por acaso, relicário foi o nome escolhido para batizar esta editoria, que traz, a cada edição, todo um universo particular de alguém, ilustrado por objetos afetivos, preciosos e cheios de memória. “Embarcando nessa de artista bruxa”, como ela mesma diz, Priscilla nos recebeu em seu apartamento e divide por aqui o seu mundo em objetos atravessados por afeto, espiritualidade e poesia.
Relicário s.m., re·li·cá·ri·o
lat. reliquĭae,ārum ‘restos, resíduo de alguma coisa’
1. Recipiente onde se guardam relíquias de santos;
2. Bolsinha ou medalha com relíquias que,
por devoção, alguns trazem ao pescoço;
3. Caixa de lembranças ou recordações;
4. Caixa ou cofre onde são guardados os objetos sagrados usados nos rituais nas igrejas;
5. Algo precioso, de grande valor.








A mulher em casa
Texto e ilustração Priscilla Menezes
A mulher em casa está em uma floresta. Entre seus dedos, invisível, existe uma lança e há terra constante em seus pés. A mulher em casa está vulnerável. A mulher em casa está em estado de sítio, onde todas as quinas lhe ameaçam e ela constrói barricadas. A mulher em casa está em uma zona de guerra e os intocáveis não serão poupados. A mulher em casa tem pensamentos perigosos. A mulher em casa atravessa um deserto onde recolhe vestígios ilegíveis de uma antiga civilização que ela mesmo fundou. A mulher em casa está em uma fronteira e é, a um só tempo, agente de controle e refugiada. A mulher em casa está no fundo do mar e inventou modos próprios de praticar apneia. A mulher em casa tem guelras e está sozinha. A mulher em casa não está esperando ninguém. A mulher em casa deseja estar em outro lugar. A mulher em casa está subindo pelas paredes e começa uma volta ao mundo sem planejar o seu retorno. A mulher em casa está se olhando generosamente pela primeira vez. A mulher em casa é monstruosa. A mulher em casa é uma horda de crianças e bichos que ameaçam as estruturas da casa. A mulher em casa é a última força a evitar a separação entre duas placas tectônicas. A mulher em casa sustenta a casa e não recebe nada a mais por isso. A mulher em casa faz amor com as sombras e gesta os seus filhos na escuridão. A mulher em casa é um eixo em torno do qual o mundo rotaciona na direção oposta ao que lá fora chamam de avanço. A mulher em casa troca a resistência do chuveiro e faz a comida. A mulher em casa quer colocar fogo na casa. A mulher em casa sente culpa. A mulher em casa é um vulcão adormecido. A mulher em casa está menstruada. A mulher em casa tem amantes como quem tem uma horta. A mulher em casa finalmente tem um teto todo seu. A mulher em casa toma conta de uma horta como quem cuida de amores. A mulher em casa quer escrever mas acha que precisa lavar os azulejos primeiros. A mulher em casa está na rua. A mulher em casa não é facilmente encontrável. A mulher em casa coloca para fora a sua animalidade latente. A mulher em casa saiu.