Olhe para dentro
Para onde estamos direcionando o nosso olhar? Com que olhos temos nos enxergado? Será que sequer estamos nos olhando? Ou toda essa conexão exacerbada está fazendo com que a gente se desconecte de si e perca uma dimensão importante da intimidade? Perguntamos a duas mulheres, Raquel Messias de Camargo e Estela Miazzi, como elas olham para dentro e também estendemos a pergunta a você
Por Layse Barnabé de Moraes
Ilustrações: Priscila Barbosa
É hora de acordar. O despertador oscila entre a vibração e o toque em cima do criado-mudo. Mal abrimos os olhos e já miramos a tela. Mais cinco minutos. Talvez ainda outros cinco. E mais um susto. Desligamos. Nem saímos da cama, mas ali mesmo já somos atravessadas por mensagens da mãe do amigo que vai chegar amanhã fake news do grupo da família pronta para ser desmentida alerta de vídeo no Yotube #tbt no Instagram stories likes comentários as últimas notícias os projetos de lei a manifestação o tweet o meme a fofoca as viagens internacionais a polêmica do dia a problematização o propósito a militância seu daily mix do Spotify os filmes imperdíveis da última premiação a ansiedade de estar aqui e mesmo assim a sensação constante de estar perdendo alguma coisa. Calma. Respira.
Para onde estamos direcionando o nosso olhar? Ou melhor: com que olhos temos nos enxergado? E será que sequer estamos nos olhando? Ou toda essa conexão exacerbada está fazendo com que a gente se desconecte da gente e perca a intimidade com nós mesmas?
Intimidade?
Márcia Tiburi, no texto O vazio da intimidade, explica que esta é “a categoria inventada para dar conta do aspecto mais interior da experiência humana”, ou como ela mesma diz, “a parte silenciosa da vida, aquilo que trata da “experiência de si”.
Outro pensador sobre o assunto, Anthony Giddens, diz em seu livro A transformação da intimidade que “a intimidade é acima de tudo uma questão de comunicação emocional, com os outros e consigo mesmo”.
A verdade é que a gente pode construir intimidade de múltiplas formas – no contato com mundos internos, na dimensão psicológica, nos mergulhos existenciais e também, claro, nas relações afetivas e sexuais.
A intimidade é como um “dentro” que só existe em contraponto a um “fora”, ideia que vai ao encontro da etimologia da palavra: do latim “intimu”, intimidade se refere ao que atua no interior, que é estreitamente ligado por afeição ou confiança, próximo, relacionando-se, portanto, ao sentir. Dentro ou fora, um lado está sempre em contato estreito com a outro. Equilíbrio é sempre a palavra-chave, mas será que a gente tem equilibrado o viver para fora com o viver para dentro?
Em seu Memorial do convento, José Saramago escreve: “O mundo de cada um é os olhos que tem”. E não é chegada a hora de a gente se perguntar quais universos andamos construindo através da forma com que temos nos olhado?
Para nos ajudar a investigar a questão, que, já adiantamos, não oferece respostas prontas, perguntamos a duas mulheres, Raquel e Estela, como elas olham para dentro. Raquel Messias de Camargo vive em Curitiba (PR), é parteira aprendiz, doula na tradição, terapeuta holística, artista da dança e do bordado e estudante de astrologia. Já a artista visual Estela Miazzi desenvolve seu trabalho em São Paulo (SP) e cria mundos profundos e submersos na forma de aquarelas, baleias e silêncios.
Raquel Messias de Camargo: uma buscadora da conexão com o que está dentro
“Olhar para dentro é o caminho para se diferenciar do fora. Olhar para dentro é bússola que busca por individualidade, qualidade que nos diferencia como seres únicos.
A vida brota de dentro – e é importante lembrar que ela se realiza fora. Dentro e fora são condições da existência que têm a mesma importância. O dentro nos individualiza; o fora nos unifica.
Na busca por individualidade, temos a sorte e o destino de poder dominar o que está dentro. Domínio é busca, é autoconhecimento, é o que se consolida com o tempo e que está sempre em movimento. Assim sendo, olhar para dentro é convite constante da vida, é fonte inesgotável que permite nos reinventarmos a cada instante.
Olhar para dentro é o convite para trilhar a jornada em busca de ser. É preciso coragem para adentrar nos mistérios de si: há momentos que a gente se depara com medos, raivas, culpas, tristezas, ilusões, vaidades, baixa autoestima, mentiras, apegos. Existem feridas no caminho, é verdade, e é melhor curá-las a deixar que sejam um obstáculo para que você deixe de conquistar a si.
Olhar para dentro é curar-se de si. E curar dentro é curar fora. É uma jornada para a vida toda. Que saibamos desfrutar desse poder com sabedoria e cumprir a nossa missão com a humanidade.
Te pergunto: como anda a sua jornada em busca de ser? A minha vem se consolidando aos pouquinhos. Nasci com a missão de ser parteira, me encontrei com o caminho aos 23 e recebi uma mestra que me amadrinha nos ensinamentos. De lá para cá, há 5 anos, o mergulho para dentro ficou mais intenso. Lidar com a vida que nasce de dentro, que está no mistério, me coloca diante do compromisso de acessar o que está dentro de mim para poder servir este sagrado ofício.
Para receber a vida, um ser, que traz consigo uma individualidade única faz-se necessário a parteira reconhecer a sua própria identidade como autêntica. Então, olhar para dentro torna-se condição deste ofício.
Existem inúmeras possibilidades de acessar o mundo interior. No meu caminho, antes da parteria, a Dança se apresentou. Me graduei em Dança e os primeiros convites para olhar para dentro com profundidade vieram da conscientização corporal através de métodos da educação somática.
Tive uma professora que questionava qual era a dança de cada estudante. Naquela época, eu pensava que a minha era o balé clássico. Aconteceu que acessar as minhas memórias corporais, meus padrões em busca de conscientização corporal, me colocou de frente com a minha identidade. E ao longo desse tempo, tive o presente de me reconhecer mulher negra através da dança.
Sou uma buscadora dentro da espiritualidade e esse caminho também tem se apresentado cada vez mais como uma conexão com o que está dentro. Hoje, depois de ter vivenciado algumas práticas espirituais e religiões, eu venho me desenvolvendo no Candomblé, que também vai ao encontro da busca interior e à consolidação do próprio destino, o Odú. O Candomblé me dá chão, me ensina sobre a terra que eu piso.
Junto com o chão, sigo o chamado do céu e bebo na fonte da astrologia tradicional para fundamentar esses saberes – também sob a guiança de um mestre e de uma escola. Conectar-se com a narrativa celeste nos dá a oportunidade de construir e validar a nossa sorte e nosso destino.
Astrologia tem como um de seus propósitos tornar a/o nativa/o protagonista de sua própria história. E, assim sendo, também desfruto desses saberes na busca de consolidar a minha individualidade. “Os astros podem contar, o dia em que me perdi foi que aprendi a brilhar”, diria.
Volto a dizer, o caminho de olhar para dentro nem sempre é agradável, mas é satisfatório. É como estar indo ao encontro de seu próprio tesouro, de seu próprio brilho. É fonte de sabedoria.”
Estela Miazzi: o mar de dentro também é imenso
“Não tem como ser prática quando a gente fala do que é de dentro. Tem uma artista que eu gosto muito, a Leya Mira Brander, que tem uma frase: “é coisa de dentro e demora”. Em 2014, quando eu comecei a fazer meu trabalho, essa frase me guiava. Para mim, olhar para dentro é empoderar quem a gente é. É entrar em contato com o que é mais humano que a gente tem dentro de si. E ser verdadeiro com isso num mundo que cobra tantas posturas da gente. Então numa discussão é tudo ‘eu acho’, ‘eu penso’ e nenhum argumento é dado com base no ‘eu sinto’. É o que o mundo faz… a gente está sempre se cobrando, se comparando. A gente tem que ser, tem que fazer. E quem a gente é mesmo? Por dentro? Para mim, olhar para dentro é transbordar. É aceitar e tentar nomear essas contradições que a gente é – e não que a gente tem. Nós somos contraditórios. A gente sente amor e raiva, sente inseguranças imensas e ao mesmo tempo amor… A gente é generosa e ao mesmo tempo egoísta com a gente. Eu acredito que as doenças físicas começam, na verdade, muito antes: nas palavras não ditas, em tudo o que a gente engole, em tudo o que a gente não nomeia. Olhar para dentro é sentir o desconforto e nomeá-lo e depois entender o que fazer com ele. Só o passo de dar espaço e tempo a uma emoção já é muito transformador. Tempo é a coisa mais preciosa que a gente tem. Disponibilizar tempo para o trabalho, para os amigos, é o mais precioso que a gente tem.
Eu olho para dentro através da minha arte. As baleias que eu faço são inventadas. Elas não são de nenhuma espécie catalogada, mas elas cabem dentro de mim. Esse lugar imenso, esse lugar que transborda. E eu sou essa baleia inventada, essa é a minha espécie. Mais recentemente, a baleia continua existindo em mim, e acho que sempre vai existir, mas o mar é cada vez mais presente e imenso dentro de mim. Eu nomeei de mar o que a gente sente ou o que a gente é. Tem gente que nomeia como inconsciente, tem gente que nomeia como fé, algum tipo de Deus, de Deusa… o importante é a gente entrar em contato com esse lugar dentro de si. O que eu sinto é também quem eu sou. E eu sinto que sou uma artista que sente e o que eu sinto é que sou uma artista. E eu sou muito privilegiada de poder olhar para dentro e trabalhar com isso.”
Estendemos a pergunta a você:
Como você olha para dentro?
Quais são seus mares internos, seu céu interior, seus mapas de navegação, suas cores, seus animais marinhos imaginários, seus silêncios, seus retiros, seu lar? Seu lado de fora tem contado a história que seu lado de dentro quer que você conte? A resposta, ao que parece, se dá no caminho. Então vá. Pegue sua própria mão. Arrisque se encarar. Atravesse. Mergulhe. Olhe para dentro.