Ouse ser do seu tamanho
Por Tayná Saes*
Ilustração Anna de Nardin
O mundo flutua entre as órbitas do mágico e do caos. Pensar que não teremos vida, braço, tempo e poder suficiente de organizar tudo pode ser desesperador e perigosamente paralisante. Mas sei que, por hora, posso cuidar das minhas gavetas, do jantar de hoje, dos sonhos que me cercam, da aflição de alguém, dos meus afetos. Eu posso ser combustível, o sopro que bate a porta, a gota que transborda o copo, a pequena engrenagem que para todo maquinário. Enquanto tentei salvar o mundo inteiro, nada fiz. Mas ao me resgatar do buraco em que eu mesma me enterrei, esse buraco que eu chamo de ego, a vista desembaçou e pude finalmente me enxergar do tamanho que sou. Assim eu me apresento para a vida agora, do ponto mais alto e intenso do que sei ser. Hoje não sinto mais que perco meu tempo ou parte de mim quando me doo, eu me encontro no outro. Sei que o que temos em comum é e sempre será infinitamente maior do que o que nos divide.
Por mais contraditório que pareça, começar a organizar o caos partindo de mim foi a escolha mais acertada que já fiz. Olhar para dentro me tirava da minha zona de conforto e isso me pareceu bastante sensato. Sei bem que te convidar para olhar para dentro de si e admirar o singelo pode parecer ignorância aos problemas mais urgentes que dançam ciranda a nossa volta. Mas não tem jeito, se queremos ser potência, temos primeiro que olhar com cuidado para o que brota em nós, arrancar ervas daninhas, fortalecer nossas próprias esperanças, limpar o olhar para perceber o próximo. A gente quer abraçar o mundo enquanto carrega um abismo no peito, não há braço que dê conta. E, veja bem, não falo de se entorpecer, muito pelo contrário: fincar os pés no solo dos detalhes é coisa para gente forte, tem que ter coragem. Pude ver isso da primeira vez que fui ao circo, ainda muito menina. O sorriso da equilibrista fazia tudo parecer banal, o coração de cada um da plateia rufava no ritmo dos tambores, estávamos todos submersos no encanto. Mas a sapatilha machucada denunciava as quedas, a demarcação precisa de cada um dos músculos das pernas deixava clara a disciplina dos treinos, a respiração ofegante imprimia o esforço de permanecer firme e o olhar fixo da moça revelava a concentração necessária para se manter em equilíbrio. É muito difícil ser delicado no tremor. Hoje, lembro dessa cena toda vez que algo estremece minha essência, me permito oscilar, me concentro e retomo. Sei que não existe vida ou mundo equilibrado, a corda é bamba e somos nós os equilibristas da vida. É por isso que às vezes é tão lindo, e em outras tantas dói.
Em tempos de brutalidade, ser delicado não é fraqueza, é proeza. Perceber-se pequeno não é impotência, é perícia. A gente não muda o mundo todo, ninguém muda, é cruel se cobrar tanto. Então sejamos responsáveis por cultivar o que já está em nossas mãos. Ler para crescer, conversar para compreender, estar para pertencer. A esperança brota em quem tem punho firme, pois falhamos muito mais pela falta de esperança do que pela real incapacidade. Olhar para dentro de si, fincar os pés na presença do outro, ser o ponto de segurança de alguém, insistir na arte, no poder das transformações cotidianas, na bondade das pessoas, se importar com mistérios que não tiram o sono da humanidade… tudo isso é dar golpe fatal na estupidez.
A delicadeza é a nossa verdadeira arma para preservar o ânimo e a beleza da vida. Grandes recompensas costumam vir quando assumimos o preço de grandes riscos: é preciso muita coragem e determinação para cravar a lança da ternura em tudo que nos tira o brilho, sem pena. Se desnudar e ser vulnerável é a mais poderosa das armaduras.
Desde que parei de praguejar sobre os defeitos do mundo e comecei a publicar meus textos semana após semana em uma newsletter que nomeei de Sutilezas Atômicas, percebi que a real transformação surge do pequeno, de tudo aquilo que conseguimos manter, semear, preservar. Conheci pessoas maravilhosas, vivi trocas inenarráveis, deixei muito de mim e recebi tanto de muitos. Voltei a ler, ajudei pessoas a voltarem a ler, repensei enquanto escrevi, ressenti, revivi, refletimos e crescemos juntos. Emprestei palavras para que outros decifrassem seus próprios sentimentos, colaborei para o nascimento de alguns perdões, enxerguei meus privilégios, abri espaço para acolher. Continuo do mesmo tamanho, com a diferença de que agora me percebo gigante pois não estou mais sozinha, não me isolo em minhas impossibilidades. E este é um convite para que você faça o mesmo: não se aliene do outro, jamais se distraia de si.
Se a nossa esperança depende de algo muito grandioso, pirotecnias ou de acontecimentos faraônicos, deixamos desprotegido algo que nos é muito caro. Ser sutil não é aspiração, é ação, mão na massa. E a alternativa contrária à esperança não me parece muito favorável… Por isso, encerro minha primeira participação numa revista impressa, que desobedece tudo o que o mercado diz e te pede para sentar, se concentrar e tocar as páginas para ser tocado de volta, algo que parece simples mas exige empenho e, principalmente, muita disposição. Na escassez de tempo, de gente, de olho no olho, de conversa e de presença, ouse ser inteiro. Venha o que vier, pinte o que pintar, seja uma pessoa de colorir.