Arquitetura do Encontro
Por Michelle Carneiro*
“Conforto é você se sentir dono dos lugares que frequenta”.
A frase de Lina Bo Bardi sintetiza um anseio evidente em sua obra: a democratização da posse do espaço. Lembro-me de quando me deparei pela primeira vez com o deque do SESC Pompeia em São Paulo, tomado por pessoas ao sol. Para mim, foi uma cena deslumbrante, porque ali eu via um espaço cultural sendo ocupado de maneira tão despojada e múltipla quanto se pretendia em sua concepção.
Para Lina Bo Bardi, arquiteta italiana radicada no Brasil, a arquitetura é um meio para alcançar objetivos coletivos, já que agir sobre um espaço é agir sobre um pedaço da cidade, da vida, é interferir diretamente no cotidiano das pessoas. Nesse sentido, cito como exemplo três espaços públicos planejados ou reformados por Lina Bo Bardi: MASP, o já citado SESC Pompeia e o Solar do Unhão, que foram capazes de se tornar importantes centros de convivência e de lazer, acessíveis e convidativos ao povo.
Em 2015, trinta e três anos após a sua inauguração (1982), o SESC Pompeia recebeu a mostra da maior representante da arte performance no mundo, Marina Abramović. A artista deixou suas impressões sobre o espaço que abrigou a sua obra: “O que eu quero é interagir com as pessoas, e o Sesc é o espaço mais democrático que vi: tudo é grátis, há pessoas de todas as classes e credos, meninos, velhos, fazem chá, você pode ver arte, ler jornais… Esse é meu público. Quero por energia em meu trabalho, não só mostrá-lo, como fazem muitos.” Em outra entrevista, suas palavras pareciam ter sido ditas pela própria Lina: “E eu gostei imediatamente. Havia tipo um sentimento de democracia. Um rio atravessava o espaço. E havia uma lareira. Alguns cristais e pedras foram colocados em diferentes cantos, marcando pontos de energia. Este não é um espaço normal de exposição onde se exibe Arte como museus e centros culturais de arte contemporânea que você encontra na Europa e na América. Tudo neste espaço é diferente. E o diferente é que nele há uma espécie de redemoinho energético, cheio de curiosidade, inocência e simplicidade.”
Os 74 metros de vão livre do MASP não são mera excentricidade, mas guardam o propósito rigoroso e poético de acolher gentilmente as pessoas que caminham pelos arredores, oferecendo sombra, servindo como ponto de encontro e como abrigo a quem não quer fazer nada ou simplesmente quer estar só. O vão livre foi concebido para receber feiras, exposições ao ar livre, exibições de filmes, apresentações de música e, de forma espontânea, tornou-se também local de resistência e de manifestações políticas.
Em Salvador, onde Lina reformou o complexo do Solar do Unhão, que passou a abrigar o MAM-BA, foi valorizada a força da criatividade popular da região, nunca como folclore ou com o usual apelo ao “exótico”, mas como uma potente força cultural que a cidade apresenta. A famosa escada em caracol, por exemplo, foi inspirada no desenho dos carros de boi, porque a criação dos sertanejos era uma grande referência de modernismo para Lina, por ser construída unicamente para a função que cumpria.
Esses três projetos foram criados para recepcionar todas as classes sociais e idades e não deveriam deixar de receber quem por ali já perambulasse antes de as obras começarem (uma preocupação improvável em se tratando de um território inserido na grande metrópole, sempre sujeita a processos de gentrificação e especulação imobiliária). Por isso mesmo, antes de iniciar as obras do SESC Pompeia, Lina passou a visitar o local todos os fins de semana, a fim de compreender o trânsito de pessoas, o convívio coletivo e as brincadeiras que já aconteciam nas redondezas e poder, assim, dar continuidade ao uso orgânico do espaço. Desde mesas coletivas para encontros ao espaço ideal para se exercer a solidão entre muitas pessoas, tudo isso foi sonhado e concretizado por uma arquiteta que não se guiava por modismos, porque almejava que a arquitetura rude, seca e dura atravessasse preconceitos e superficialidades.
Dona Lina, como Caetano Veloso a chamava, sempre buscou a simplicidade como resultado dos seus projetos, sem adornos, sem supérfluos, apenas o essencial era incluído em termos materiais e subjetivos. E, assim, os projetos puderam manter-se autênticos e libertários até hoje, porque foram criados para pessoas e não para serem obras monumentais, estas erguidas nas cidades apenas para cumprir papel simbólico, geralmente ligado à demonstração de poder de particulares.
Seus espaços aqui citados são pautados pela convivência humana e negam a beleza pela beleza, porque, embasadas somente em preceitos estéticos, as construções tornam-se obsoletas e são facilmente substituídas. Assim, seus poucos mas relevantes projetos são espaços que superam tais fronteiras, porque são edificados sobre um conhecimento mais profundo e respeitoso da realidade social do espaço. São espaços que buscam ser ação integradora, pois a cidade privatizada já se encarrega de segregar.
Dois fatores incontornáveis de nosso momento são: individualismo e falta de tempo. As pessoas se isolam no mundo dos celulares e não saem de casa, temendo o fantasma da violência urbana ou não encontram energia para circular pela cidade devido às rotinas pesadas de trabalho. É aí que a discussão que Lina trazia para a arquitetura pode aparecer e servir de ferramenta para respirar nesses tempos. Se a modernidade nos afastou uns dos outros, não poderia a arquitetura promover encontros de modo a potencializar as experiências em comunidade? Em tempos de intolerância, não poderia a arquitetura nos acolher em cantos confortáveis e lúdicos? Em tempos de desinformação, não poderia a arquitetura promover cultura e poesia a partir do espaço?
Lina Bo Bardi fez mais que arquitetura: olhou pra dentro e olhou para o outro. Repensou seus ideais racionalistas e funcionais depois de ser confrontada com a escassez e a inventividade do povo daqui. Por isso mesmo, foi ela quem trouxe pela primeira vez a um museu do sul do país os problemas e riquezas culturais do nordeste. A exposição “Bahia”, no Ibirapuera, trazia o chão coberto de folhas secas e a audácia de exibir o artesanato brasileiro como arte.
Como designer e criadora, as ideias revolucionárias e humanistas de Lina me foram uma forte inspiração, tanto no âmbito social quanto no estético. Seu olhar agudo sobre o Brasil me trouxe vontade de pertencer, me mostrou novos significados e sentido para a produção popular e para o modernismo. Ao desestabilizar o meu olhar e “desnormalizar” a vida aqui, enxerguei que há muita poesia nesse país. Essa busca de conhecimento da origem e das peculiaridades de um povo vem acompanhada do orgulho que a cultura que nasce e resiste aqui me ensinam: um desejo de ver uma sociedade mais justa por meio da democratização dos espaços, para que o povo possa se olhar, se ver e se reconhecer em uma cultura e em um ambiente que são autênticos, democráticos, livres e “cheios de eletricidade vital”, como ela mesma ressaltou.
Foto do header: Sesc Pompeia, de Lina Bo Bardi – Foto: Rômulo Fialdini